terça-feira, 21 de abril de 2009

Já passou...

Se há momento que me arrebata de entusiasmo, ele é a entrada no consultório do dentista. Depois de uma dormência que suspeito ser de origem hipocondríaca, acabei por escolher o caminho da penitência. Boca aberta. Tubo estranho a expelir seja lá o que for. Maxilares com encaixe no ponto de equilíbrio limite. Pilha de nervos. "Espectáculo. Reparem na categoria destes dentes!" Espionagem a 6 olhos. "Pois é, caro amigo. Tens uns dentes espectaculares. As gengivas é que são uma merda. Temos de tratar disto." Não gostei desta última parte. As gengivas até podem estar num estado lastimável, mas será que não podemos tratar disso quando voltar cá na próxima década? Para atenuar o carácter bélico que a minha mente assume por instinto, comecei a simular percussões com as pontas dos dedos nos apoios da cadeira (um dentista tratar um cliente com as mãos soltas é definitivamente um acto de coragem) e concentro-me nas minhas antíteses. Dentes magníficos, gengivas de merda. Olfacto apurado, mas o septo nasal mais torto que as costas de um corcunda. Olhos lindos de morrer (esta é só para enfatizar), mas ao longe não vêm um carilho. Audição perfeita, mas um desequilíbrio tão grande no ouvido interno (síndrome vertiginoso para quem gosta de chamar as coisas pelos nomes) que nos dias piores a terra não é quadrada nem redonda, é a centrifugação numa máquina de lavar roupa. Sovaqueira selvaticamente densa, mas que aparece como destino de luxo nos melhores guias turísticos para piolhos (não sei de onde surgiu esta, mas na cadeira do dentista não convém um gajo interromper raciocínios). Umas unhas dos dedos dos pés com um desenho de excelência, mas que ao mínimo descuido decidem crescer carne adentro. Grandes tomates, mas de dimensão testicular diferente (nada de perguntas, se faz favor) e provavelmente o peso também (não dá para conferir esta individualmente, eles recusam-se a estar longe um do outro). Cingindo-nos a índices de valentia, esta última não podia ser mais falsa. Consigo ser mais cobarde do que qualquer um que me desafie. Uma no cravo e outra na ferradura. "Terminámos. Levas este gel para massajar as gengivas depois de cada lavagem dos dentes." Cuidadosamente voltei a reencaixar tudo no sítio. Aperto de mão. "Daqui a 5 anos, volto a passar por cá. Vou indo. Prazer em vê-lo." (Pelas costas!!)

Até o alivio de sair dali para fora contrasta com o suplicio das massagens bidiárias. Especialmente quando os dedos atingem as extremidades da boca e tocam as membranas inferiores da língua. Já aprendi a não o fazer depois do pequeno almoço. Consegue ser tão eficaz como colocar os dedos na garganta antes de deitar o corpo alcoolizado.

Deus é perfeito. Deus criou o homem à sua imagem. Regozijo-me com mais este contraste. Eu prefiro acreditar que o homem se viu forçado a criar Deus. E, logo a seguir, cagou satisfeito no assunto e deixou-o sem imagem e tudo. Afago a calvície que me poupa o pentear matinal e inspiro demoradamente para exagerar a proeminência duma barriga de anos acumulados de tratamento privilegiado. Vou-me deitar.

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