quinta-feira, 26 de março de 2009

Ando preocupado com os padrões de sociabilidade elevados da minha vizinhança.

Resumindo, desde que concluí as obras na minha barraca, ando a comer em casa dos vizinhos mais próximos, à média de duas vezes por semana. Já tentei iniciar um processo de negação, mas a fraqueza de espírito aliada a esta mândria inata que, salvo raras excepções, é mais forte que eu, acaba por me fazer sempre aterrar, sem grandes dificuldades no trajecto, nas mesas daquelas almas caridosas. Para não me sentir tão mal comigo mesmo, comecei a edificar lá em casa uma garrafeira de gosto requintado (pelo menos eu gosto das vinhaças que, por egoísmo, são condenadas a consumo próprio) para tentar não aparecer de mãos a abanar.

O desconforto, no meio de toda esta perfeição, é que começo a sentir-me cercado por uma rotatividade a que me vou esquivando. Tento refugiar-me na estratégia de ir sempre oferecendo a outra face, ou neste caso a mesma boca, mas acredito que as paciências bíblicas lá do prédio vão acabar por esgotar-se. Como tal, tenho tirado proveito de alguns argumentos criativos para ir desarmando tímidas ofensivas, que aproveito para partilhar. Se algum de vocês, por um infeliz acaso, se desviar do seu percurso e teimar em ler este texto, sinta-se convidado a acrescentar qualquer sugestão que lhe pareça apropriada.

  • Sou um péssimo cozinheiro. Sei grelhar bifes (mas não tenho a mínima sensatez culinária, até porque gosto da carne praticamente crua) e encaminhar as pizzas do congelador para o forno e deste para a boca. Mais do que isto, é audácia de resultado imprevísivel e no meu dicionário aventura e cozinha aparecem em páginas muito distantes. Diria mesmo, que o facto de amealhar comida em casa pode, sem grande dificuldade, ser considerado um atentado à saúde pública.
  • Noutros tempos, a simples ideia de se fazer um jantar chez moi, seria desde logo adjectivada de inconcretizável. A inadequabilidade do cenário era imediata. O meu mobiliário resumia-se a uma bancada de cozinha com lava-louça incorporado, um frigorífico, um micro ondas, uma poltrona, a mesa redonda à medida para o portátil e respectivos adereços, uma cadeira, a televisão que conseguia codificar a imagem dos canais de sinal aberto mas tinha um som fantástico (se bem que não regulável), um banquinho que servia apenas para descansar o dito enquanto cortava as unhas dos pés (o estado do bidé já era duvidoso) e um colchão (este estava parcialmente assombrado, desde que uma amiga arco-íris quase ficou electrocutada na tomada fora de validade, que devia estar escondida pela mesa de cabeceira que já não estava lá). Agora é tudo novo. E pior, está tão candidamente asseado que me parece pecaminoso desenvolver actividades num plural tão extenso.
  • Tenho o meu próprio conceito de arrumação. Não quero, por isso, ser responsável pelos danos morais resultantes do aparecimento fortuito de umas cuecas por passar na gaveta do faqueiro, duma caixa de imodium esquecida dentro duma frigideira ou do piaçaba se ajustar à medida, no lugar vago entre a Quinta do Cabriz e a Quinta do Cerrado.
  • Os bebés e as crianças em geral são criaturas adoráveis (pelo menos, os poucos com quem simpatizo). Por outro lado, os meus tarecos, quando são muito novos ou demasiado velhos (neste momento, não sobram outros) carregam um valor estimativo apreciável. Contudo, a ideia de ambos partilharem o mesmo espaço afigura-se-me inconcebível. Lamento. Sinceramente.
  • Grande parte da população mundial, ou sofre de prisão de ventre, ou possui uma frequência intestinal diária apreciável. Eu, como ser quase humano e dissemelhante, consigo repetir três defecadelas por dia (em dias de maior ansiedade, que não são raros, ainda tenho necessidade de recorrer a uma quarta cagada), dispostas cuidadosamente ao acordar e após o almoço e o jantar. Não me resta portanto outra opção, senão agradecer encarecidamente que poupem a minha porta da retrete ao papel de anfitrião, enquanto alargo a minha colecção de croquetes enformados, após o repasto. Este argumento também atesta a inegável qualidade dos alimentos que tenho por casa. (Recorrer a esta matéria só em caso de desespero, por razões óbvias)


Como não confio totalmente na credibilidade desta exposição, nem tão pouco na minha eloquência ao defendê-la, qualquer ajuda será largamente apreciada.

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